Filmes biográficos são sempre complicados. O produtor ao assumir a responsabilidade de retratar uma personalidade arca sempre com mais do que pode cumprir. Por se comprometer a retratar a verdade, mesmo que de forma parcial, a produção atrai para si os olhares mais atentos, sempre em prontidão para denunciar todo e qualquer falseamento, mesmos quando estes não podem ser detectados de forma muito precisa.
Falar a verdade nunca foi tarefa muito simples. Em primeiro lugar, a tal verdade deve ser identificada; o que por si só já é tarefa pouco alvissareira. A verdade não é uma coisa, um objeto palpável pronto a ser manuseado. Também não está sujeita a conceitos estanques. A verdade, além de ser de difícil apreensão, não tem forma, nem volume definidos. É dinâmica e imprecisa. Uma mentira bem contada, normalmente, oferece muito mais conforto, confiabilidade e segurança. Não se deve confiar muito na verdade.
O conhecido aforismo “contra fatos, não há argumentos” não merece o crédito que comumente recebe. CONTRA FATOS, HÁ MUITOS ARGUMENTOS. Os fatos, embora concentrem em si verdades que não podem ser descartadas, tem alcance limitado. Os fatos, por si só, explicam (mal) pouca coisa. Representam uma verdade objetiva, que por sua vez necessita de uma boa dose de subjetividade para a sua afirmação. A verdade é algo em permanente construção e perturba os espíritos mais preguiçosos. Os fatos, como verdades, existem, mas raramente constituem porto seguro. Ao contrário, verdades são desconfortáveis, inoportunas, impertinentes e pior de tudo, são insuficientes. O conceito de verdade é algo bastante polissêmico; não chegaremos a esgotar as possibilidades de definição da verdade por serem muitas e em construção contínua. Talvez, por isso as pessoas mintam tanto. A mentira simplifica em determinados momentos a nossa existência.
Nesse contexto, produzir biografias (escritas, filmadas, etc.) constitui em trabalho de difícil condução. Por mais “confiáveis” que sejam as fontes, estas se mostram de caráter relativo. Logo, uma boa fonte não garante aos produtores municiá-los de verdades incontestes. Contudo, podem, quando utilizadas criteriosamente, evitar distorções que debilitem a credibilidade da obra e, conseqüentemente, de seus produtores.
Quando essas fontes são escassas o trabalho usualmente se complica. No caso do filme “Amadeus” de Milos Forman, com roteiro de Peter Shaffer, isso fica bem evidenciado. Como retratar a vida de uma pessoa que conta com registros tão vagos sobre si? Wolfang Amadeus Mozart (interpretado no filme pelo competente Tom Hulce) é um dos compositores mais populares e celebrados da história da música erudita. Poucos foram tão produtivos quanto ele, poucos foram alçados à tão longe e também poucos experimentaram ostracismo tão contundente. Foi, na sua época de apogeu, uma estrela de sua época; O menino prodígio que encantava a todos com seu talento. Músico virtuoso aos cinco anos de idade. Escreveu óperas inteiras já na adolescência. Brilhou intensamente. Dessa época vêm os registros mais fartos e com maior possibilidade de segurança sobre o gênio austríaco. A fase seguinte, de decadência, já não conta com tanta fartura. Mozart, de tão esquecido que tava na ocasião de sua morte, não conta sequer com uma sepultura conhecida. Ninguém sabe com precisão onde se encontram seus restos mortais. Dessa forma, a dificuldade de retratar essa fase da vida de compositor fica ainda mais difícil do que já é de se esperar.
Não devemos, obviamente, procurar uma obra, por melhor que seja, esperando exatidão histórica. São adaptações pautadas em acontecimentos que possivelmente ocorreram, nem que seja na imaginação dos produtores. Por exemplo: a rivalidade entre Mozart e o compositor italiano Antonio Salieri (soberbamente concebido e interpretado por F. Murray Abraham) que ocupa papel central no filme e rende algumas das melhores cenas, comete, a meu ver, algumas injustiças. Salieri foi retratado no filme como o antagonista de Mozart em seus mais variados sentidos: se Mozart era um homem desregrado, amante da bebida e das mulheres, Salieri foi retratado como um homem contido, casto e virtuoso. Se Mozart era o talento infinito, Salieri era o limitado, medíocre mesmo. Será? Duvido muito. Salieri foi um dos maiores compositores de sua época, autor de peças belíssimas que lhe deram imenso prestígio nos principais centros da Europa. De onde tiraram que Salieri era medíocre? Dificil dizer. A amplitude da rivalidade entre eles também é de difícil precisão. Provavelmente existiu, mas com poucas possibilidades de apreendermos a dimensão desta. Uma coisa acredito ser certa: Salieri de forma alguma merece ser passado pela história como “Santo padroeiro dos medíocres”. Sua obra não perdurou com a mesma força que a de seu colega/rival, mas não deve de forma alguma ser menosprezada. Nesse sentido, pode-se dizer que o filme fez um desserviço à boa música e atentado contra algumas percepções de verdade histórica. Contudo, isto não significa que o filme seja ruim. Ao contrário: é maravilhoso! O meu preferido em todos os tempos! Caracterizações magistrais, fotografia linda, ambientação bela (o filme foi locado em Praga), interpretações brilhantes, música sublime e uma trama realmente muito envolvente. Mas que ele foi muito cruel com o pobre Salieri, ah isso foi!
(Autor do texto: Jonadabe)
(Autor do texto: Jonadabe)